"Tenho
33 anos.Tive uma conversa interessante com minha mãe estes dias. Ela estava reclamando
mais uma vez do meu gosto pela solidão - o que ela detesta, ao passo que eu
leio livros inteiros na minha paz. E comentava de quando iam trabalhar ela e
meu pai e eu ficava com uma vizinha (pessoa que amo muito).
Mas depois que esta
vizinha se mudou, eu ficava sozinha. Via TV o dia todo, que paraíso. Sou muito
"televisiva" e cinéfila. Acontece que nessa de eu estar sozinha em
casa aos 8 anos de idade, um outro vizinho me fez duas visitas.
Em uma delas,
deixou um amigo esperando na porta. Não, ele não chegou onde queria porque não
quis correr riscos, eu acho. E o amigo dele que ficou esperando na porta só não
entrou por eu já estar implorando para que fossem embora. Claro que tais
visitas me fizeram procurar psicólogos já na fase adulta. Não é preciso
ser barbaramente violentada e morta em seguida pra que haja um dano à pessoa.
Sempre pensei que minha normal frieza e capacidade de esconder o que sinto me
tivessem feito esconder tudo tão bem até de mim mesma.Mas não... Minha mãe me disse
que eu escrevi um bilhete falando de um homem armado de faca vindo me pegar, e isso
por volta dos 8 anos. (Essa foi a fase dos pesadelos, eu quase não dormia.)
Minha mãe disse que se preocupou, não entendeu o que seria aquilo. Eu dei um
sinal no bilhete. Pensei que não sentisse medo dele na época. Mas sentia muito.
Recentemente, quando ele foi assassinado, pude vê-lo de outro ângulo: de cima
para baixo, pois além de mais alta, eu estava viva. Não se espante, nunca fomos
amigos...Mas quando eu mesma já havia encerrado os debates interiores a
respeito desta fase, me surge um fato deste porte. Dei sinal de perigo e ninguém
viu. Aliás, foi nesta idade minha primeira crise epilética, no fim do ano. Sabe
o que minha mãe fez em relação ao tal bilhete? Mostrou a uma vizinha que,
sabiamente, concluiu que eu devia me sentir solitária por meus pais precisarem
trabalhar o dia todo.
Grande
"psicóloga" ela. E todos se deram por satisfeitos. Acontece que a
vizinha conselheira era mãe do lobo-mau, mas não sabia que estava criando um
animal. Para aplacar minha solidão, fui passar uns dias com uma tia.
Eu ficava
finais-de-semana lá. Aí o meu primo mais velho gostou de mim (mas eu era criança,
droga). Que sorte a minha, ele tinha de se limitar a bem menos do que gostaria,
pois eu quase chorava alto. Minha pergunta é: como estes homens espertos
escolheram a vítima certa, mas os que moravam comigo não viram meus sinais de
fumaça? Eu vivia tendo pesadelos e ainda escrevi este bilhete e o dei a minha mãe.
Eu nasci na família errada? Eu nasci tonta? Porque ainda sofri bulling na
escola. Por que essa sequência?
Isso tem
uma explicação? Tem causa? Eu mesma não acho. Eu guardo uma página de caderno
onde escrevi: Não me toque, também sinto dor. Será que alguém leu? Sempre achei
que não, que o segredo fosse tão perfeito que só podia me conformar com isso, mas
pedi socorro, ninguém viu e isso me faz sofrer. Eu já havia encerrado este capítulo,
mas saber deste bilhete meu me entristece, para dizer o mínimo.
Já agradeço
a atenção e resposta".
Na Infância...
Cara, confesso que seu texto está um pouco confuso, mas entendo o
cerne da questão. Sua queixa é clamar por uma ajuda que não veio.
Muito bem, quem 25 anos atrás imaginaria a existência (tão perto)
da pedofilia?
No máximo, isso era coisa de gente pervertida que pegava as
meninas pobres, sem pai nem mãe; além disso, o casamento com meninas ou
relacionamento de meninas com homens mais velhos era corriqueiro, o que causava
um certo relaxamento nessa área.
Na mesma linha, nessa época, pouco se falava de psicologia infantil, ainda mais bulling (algo corriqueiro nos dias de
hoje) fato que com certeza faria com que seus pais pensassem mais nesse bilhete
que escreveu.
Quanto à queixa, entendo seu "trauma", mas posso lhe
garantir, salvo algum detalhe que você não tenha descrito, que seus pais agiram
dentro uma normalidade esperada.
O que então
reverbera em você?
Diria que é o abandono, esse aliás foi o mote para que a psicologia infantil avançasse
tanto, um estudo sobre abandono feito nos EUA e Inglaterra, em muito contribuiu
para o avanço do que vemos hoje em termos de cuidado e bom desenvolvimento
psicológico.
Sua sensação de abandono, talvez ainda seja algo decisivo para que
possa confiar em alguém, assim como
você deixou de confiar em seus pais e passou a ter que resolver seus assuntos sozinha,
mais ainda, criou um mecanismo de defesa
tamanho que essas situações eram vistas, e são até hoje, como grandes trunfos,
segredos.
Veja, o que posso te dizer é que sem dúvida você tem fantasmas que
precisam ser enterrados, o ideal é que procure um especialista para te ajudar.
E claro, você tem o direito de ser feliz, conhecer pessoas, se apaixonar e
viver um relacionamento estável, isso é possível e você pode encontrar alguém
que lhe dê a sua, ainda não sonhada, segurança!
Alexandre
Santucci
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Publicado
no SeR em 08 de Janeiro de 2011 21:50